sábado, 4 de outubro de 2008

PORTUGAL PROFUNDO: Almoço na feira de Ourém


Em Portugal, a designação em título refere-se ao Portugal típico, áquele, digamos assim, ainda não “poluído”, não mexido ou contaminado pelo que designamos de globalização.
Numa quinta feira, dia de feira em Ourém, cidadezinha do Ribatejo lusitano, decidimos, após deambular pela feira inflacionada de tendas ciganas, almoçar num “pé sujo” dentro do recinto da feira: cozido à portuguesa.
Conseguimos dois lugares em uma das várias mesas corridas, encomendamos a refeição e meio litro de vinho novo. À nossa frente um casal idoso e, na ponta, uma mãe com um irrequieto garoto que, de segundo a segundo, aprontava uma e apanhava o correspondente safanão dela, ora extremamente irritada, ora terna de beijos e abraços: o garoto derrubava o refrigerante do copo, enfiava os dedos nos pratos dos vizinhos e chupava-os a seguir, punha-se em pé na mesa, tirava melecas do nariz e espalmava-as na toalha...
Sentado em frente ao garoto, o avô, aplaudia com o olhar.
― Dezanove quilos ― disse, me olhando de lado.
Relutante, aprovei com a cabeça.
― E só tem três anos ― continuou, levantando a mão direita, esticando três dedos, os outros dois segurando um naco de farinheira que retirara do prato.
Pensei com meus botões no que seria daqui para a frente aquela pestinha...
Descubro, com contida admiração, que o garfo dos comensais que nos rodeiam serve apenas para, de tempos em tempos, acondicionar a comida no centro do prato. Os alimentos são levados à boca com as calejadas mãos, de unhas negras.
Pedimos, um pouco receosos de não sermos bem recebidos, para bater uma foto da mesa, onde todos aparececem. Para nossa surpresa somos atendidos com sorrisos.
A conversação foi estabelecida.
― E de onde são os senhores? ― pergunta o velhote à minha frente.
Para evitar grandes descrições digo-lhe que somos de Setúbal, cidade na raia do Alentejo.
― Ah... são quase espanhóis... quem é de lá de baixo, depois do Tejo, é espanhol ― remata ele, com segurança.
E apresenta-se:
― Sou António do Bairro Estucador.
― Sim... ― digo, reticente ― mas o seu nome mesmo é...
― António do Bairro Estucador.
Lembrei-me da história de Almir Nome de Guerra, o comandante que conheci numa viagem pelo Amazonas.*
O senhor António do bairro (Bairro?) estucador (Estucador?) já tinha, segundo ele próprio, corrido o mundo: conhecia tudo desde Cascais a Ourém! Ficamos a saber que o Brasil é o país com mais “gente” que existe e que a culpa de todas as guerras são as “velocidades” do tempo.
― O grande problema hoje são... ― diz, se inclinando um pouco para diante, como que contando um segredo ― as águas.
A seu lado, Dona Abregondina, respeitável bigode, sorria em silêncio, sublinhando com o olhar cada palavra, cada frase de seu marido.
― É, é... ― confirma o outro velhote, mastigando, exibindo pedaços de orelha de porco e chouriço, semi destroçados, entre os escassos dentes.
Ficamos ainda a saber como se faz água-pé e se secam figos. Tudo descrito minuciosamente, com as dicas e detalhes de quem sabe e faz. Tudo com a limpidez de olhar de quem se abre e partilha o que sabe.

O cozido estava uma delícia, o preço, irrisório. Seu António do Bairro (bairro?) Estucador (estucador?) convida-nos a participar das vindimas nas terras dele e dá-nos a provar um gole de aguardente de uma garrafa que retira do bolso.
― É para fazer a digestão... mas mas na nossa idade não pode beber muito!
Fico com a sensação de que o velhote nos contou todos os segredos que tinha.
Levantamo-nos tontos de vinho, embriagados com a pureza de nossos companheiros de mesa.
O Portugal profundo é outro país.

(Escrito no Tijolo, instalado na varanda traseira do Palácio dos Casais, tendo a visão do castelo de Ourém no alto à direita, e o aroma do pinheiral em frente, invadindo minhas narinas)

4 comentários:

MCT disse...

FANTÁSTICA a crônica de Dona Abregondina e de seu Antonio do Bairro Estucador... Que mundo e que universo em que eles vivem... A minha primeira reação foi rir da foto de Dona Abregondina, e da história de seu marido dizendo que ela era linda, ri quase até às lágrimas, mas estava rindo como uma reação estúpida para não chorar de emoção... ELES SÃO LINDOS, SIM!!! MUITO LINDOS EM SUA SIMPLICIDADE, EM SUA PUREZA E EM SUA IGNORÂNCIA!! O FANTÁSTICO é que tu percebeste isso e transformaste com muita delicadeza, numa bela crônica!!! PARABÉNS!!! Este é meu amigo Pedro Veludo com toda a sua riqueza narrativa de um contador de histórias...

Dona Sra. Urtigão disse...

Ó, Pedro, não chames "pestinha" ás crianças vivas e inteligentes que estão a descobrir o mundo. Quanto mais exploram , mais serão conhecedores. Unica falha em uma cronica adorável e esclarecedora.

Unknown disse...

Sempre que quiser será bem vindo a Ourém, é uma terra de gente simples a população idosa ainda vive muito a base da agricultura tradicional, na minha opinião devia ter ido ao Bairro (nome de terra) pois nessa terra existe o maior trilho de pegadas de dinossauro herbívoro do mundo, um sitio interessante de se visitar…
Boa sorte para o seu trabalho…
: )

Henrique Pedro Queiroz Veludo Gouveia disse...

Comentário favorável de AMIGO, não vale...
Abração, meu amigo!