sábado, 18 de outubro de 2008

PORTO QUE LEMBRA O QUE NÃO SEI...


Subo pela segunda vez à torre (dos Clérigos). A primeira foi há muitos anos com meu pai. Lá, no andar mais alto, no sino maior, ele escreveu, em vermelho, os nossos nomes. Escreveu... ou disseram-me que ele escreveu, ou eu sonhei que ele escreveu (ou eu quis muito que ele tivesse escrito).
Porto que me lembra pai, lembra frio e broa. Lembra cozinha da avó com cafeteira de cevada ao lume.
Porto, meu “pequeno” Porto, da Praça dos Poveiros e Jardim de São Lázaro, onde eu prendia folhas secas apanhadas do chão, com palitos de fósforos, formando coroas que punha na cabeça e pendurava ao pescoço, desfilando feito herói de mim mesmo.
Porto que lembra pontes que, ao atravessá-las entro em recantos de mim que de tão escondidos e escuros não consigo ver se as memórias são ou não acontecidas: se mas contaram ou não, se as imaginei, se as misturei com outras ou são antigas fotos que não sei onde estão, se são frases ouvidas a não sei quem, se sonhos, se pensamentos...
Porto que o passear por tuas ruas me trás desassossego, como se a qualquer momento fosse encontrar uma marca, um sinal de mim, ou como se eu me fosse encontrar ao dobrar de uma esquina.
Porto que lembra o que não sei saber se foi.

sábado, 4 de outubro de 2008

PORTUGAL PROFUNDO: Almoço na feira de Ourém


Em Portugal, a designação em título refere-se ao Portugal típico, áquele, digamos assim, ainda não “poluído”, não mexido ou contaminado pelo que designamos de globalização.
Numa quinta feira, dia de feira em Ourém, cidadezinha do Ribatejo lusitano, decidimos, após deambular pela feira inflacionada de tendas ciganas, almoçar num “pé sujo” dentro do recinto da feira: cozido à portuguesa.
Conseguimos dois lugares em uma das várias mesas corridas, encomendamos a refeição e meio litro de vinho novo. À nossa frente um casal idoso e, na ponta, uma mãe com um irrequieto garoto que, de segundo a segundo, aprontava uma e apanhava o correspondente safanão dela, ora extremamente irritada, ora terna de beijos e abraços: o garoto derrubava o refrigerante do copo, enfiava os dedos nos pratos dos vizinhos e chupava-os a seguir, punha-se em pé na mesa, tirava melecas do nariz e espalmava-as na toalha...
Sentado em frente ao garoto, o avô, aplaudia com o olhar.
― Dezanove quilos ― disse, me olhando de lado.
Relutante, aprovei com a cabeça.
― E só tem três anos ― continuou, levantando a mão direita, esticando três dedos, os outros dois segurando um naco de farinheira que retirara do prato.
Pensei com meus botões no que seria daqui para a frente aquela pestinha...
Descubro, com contida admiração, que o garfo dos comensais que nos rodeiam serve apenas para, de tempos em tempos, acondicionar a comida no centro do prato. Os alimentos são levados à boca com as calejadas mãos, de unhas negras.
Pedimos, um pouco receosos de não sermos bem recebidos, para bater uma foto da mesa, onde todos aparececem. Para nossa surpresa somos atendidos com sorrisos.
A conversação foi estabelecida.
― E de onde são os senhores? ― pergunta o velhote à minha frente.
Para evitar grandes descrições digo-lhe que somos de Setúbal, cidade na raia do Alentejo.
― Ah... são quase espanhóis... quem é de lá de baixo, depois do Tejo, é espanhol ― remata ele, com segurança.
E apresenta-se:
― Sou António do Bairro Estucador.
― Sim... ― digo, reticente ― mas o seu nome mesmo é...
― António do Bairro Estucador.
Lembrei-me da história de Almir Nome de Guerra, o comandante que conheci numa viagem pelo Amazonas.*
O senhor António do bairro (Bairro?) estucador (Estucador?) já tinha, segundo ele próprio, corrido o mundo: conhecia tudo desde Cascais a Ourém! Ficamos a saber que o Brasil é o país com mais “gente” que existe e que a culpa de todas as guerras são as “velocidades” do tempo.
― O grande problema hoje são... ― diz, se inclinando um pouco para diante, como que contando um segredo ― as águas.
A seu lado, Dona Abregondina, respeitável bigode, sorria em silêncio, sublinhando com o olhar cada palavra, cada frase de seu marido.
― É, é... ― confirma o outro velhote, mastigando, exibindo pedaços de orelha de porco e chouriço, semi destroçados, entre os escassos dentes.
Ficamos ainda a saber como se faz água-pé e se secam figos. Tudo descrito minuciosamente, com as dicas e detalhes de quem sabe e faz. Tudo com a limpidez de olhar de quem se abre e partilha o que sabe.

O cozido estava uma delícia, o preço, irrisório. Seu António do Bairro (bairro?) Estucador (estucador?) convida-nos a participar das vindimas nas terras dele e dá-nos a provar um gole de aguardente de uma garrafa que retira do bolso.
― É para fazer a digestão... mas mas na nossa idade não pode beber muito!
Fico com a sensação de que o velhote nos contou todos os segredos que tinha.
Levantamo-nos tontos de vinho, embriagados com a pureza de nossos companheiros de mesa.
O Portugal profundo é outro país.

(Escrito no Tijolo, instalado na varanda traseira do Palácio dos Casais, tendo a visão do castelo de Ourém no alto à direita, e o aroma do pinheiral em frente, invadindo minhas narinas)

Dona Abregondina, esposa do Sr. António do Bairro (bairro?) Estucador (estucador?).
― Ela é linda! ― disse ele.
E eu, pelo tom de voz com que ele falou, fiquei achando que ela é mesmo linda...
(Abregondina, sim, esse o nome dela: para quem acha que os nomes dos personagens do meu romance são estranhos...)

CRÔNICA

*Na conversa com Seu António do Bairro (bairro?) Estucador (estucador?), e a propósito do modo como enunciou seu nome, lembrei-me desta crônica que abaixo transcrevo, publicada no livro de crônicas "Álbum de Retratos"
ALMIR NOME DE GUERRA I
A bordo do Cometa Halley, a caminho de Manaus, converso com o comandante...
― Almir, Almir nome de guerra.
― Sim ― disse-lhe eu ― mas o seu nome mesmo é...
― Já lhe falei: Almir.
― Mas ― perguntei, confuso ― Almir, não é o nome de guerra?
― Correto: Almir nome de guerra.
Interrompi o diálogo. Tive receio de aborrecê-lo. Porém, não era esta a única ambigüidade no comandante. Quando alguém ao meu lado lhe perguntou há quantos anos ele andava no rio, respondeu:
― Há muitos.
― Você nem lembra mais há quantos... ― insistiu, com um sorriso, o contabilista de anos ao meu lado.
― Não ― respondeu o comandante, piscando um olho.
A princípio pensei que ele piscasse os olhos para fazer sinais a alguém invisível para nós, bem à sua frente. Ou fosse uma espécie de tique. Depois concluí que não. O velho caboclo teria mais de setenta anos e na certa fechava os olhos alternadamente para os descansar.
À noite, nos lugares mais difíceis, e na neblina cerrada da manhã, era ele quem estava ao leme, sempre rodeado de um ou dois pilotos mais jovens, que observavam em silêncio. E o comandante Almir Nome de Guerra, apontando a invisível margem, diz:
― Muratinga. Ali ― aponta mais adiante ― é a boca do Madeirinha.
Tudo com um olho só. Consulto o mapa que havia comprado por ser o mais minucioso dentre três ou quatro disponíveis em mais de uma dezena de livrarias e bancas de jornais por onde deambulei.
― Não adianta olhar. Não vem aí ― diz ele sem olhar o mapa que eu pensava estar consultando com discrição, e sem tirar o olho do rio.
Não vinha mesmo. Pergunto-lhe se existirá algum mapa onde esses pequenos locais e acidentes geográficos venham assinalados.
― Só nesse aqui ― responde-me, impassível.
Procuro em volta e não vejo qualquer mapa. Olho inquisitivo um dos pilotos, que me faz uma indiferente afirmativa, enquanto os seus olhos acompanham o do mestre.
― Qual mapa, comandante? ― pergunto.
― Esse aqui ― responde ele no mesmo tom.
Imitando-os, concentro a minha atenção no rio. O mapa estava todo dentro da cabeça dele e a ponta do lápis, que uso para percorrer e assinalar o meu, eram os seus olhos. No caso do comandante Almir nome (?) de guerra (?), um olho só.