terça-feira, 6 de agosto de 2013

CARTAS DE ANA E PEDRO (primeiras 8 de 17 cartas)

Ana e Pedro separam-se por um período inicialmente previsto para ser curto. Enquanto Ana viaja por diversos lugares, remetendo-lhe breves relatos de suas leituras de mundo, Pedro permanece no Rio de Janeiro.
   Cartas de Ana e Pedro é parte da correspondência que eles trocaram durante esse tempo.


CARTAS DE ANA E PEDRO

1.   Entre Rio e Belo Horizonte, julho de 2004
     Pedro querido:
     Há poucas horas tentava descortinar imagens em teu rosto, para mais tarde as folhear no álbum de retratos de meu peito. Agora, meu olhar se espraia pelas montanhas que a cada curva se desdobram e se oferecem nuas. E penso em minhas dobras (tão pouco nuas para ti) que escondo à tua leitura e, mais do que isso, nos motivos porque as escondo de mim mesma.
     E vi uma árvore que falava, um homem imóvel como uma rocha, e uma pedra cujas raízes entravam tão fundo na terra que me escorreram lágrimas pelo rosto.
     Pela janela do ônibus tento uma foto mas meu olhar possui contornos que a incompetente objetiva não alcança, e me frustro.
     Saudades de tuas mãos acordando meu corpo.
                                          Ana
PS: Não esquece minhas plantas!


2.   Rio, julho de 2004
     Querida Ana,
     Grafo para ti, palavras que no papel se me aparentam gastas. Inconformado, torço-as, troco-as, risco-as. Deformadas, elas mutilam meus sentimentos. Jogo o papel fora e encaro nova folha, em branco. Tão branca e tão cheia de porções de mim, e de outros, e de outros, e de outros... (uma folha de papel só está em branco se não se olha para ela, concluo).
     Por que não consigo reter, ainda que por um instante, minha saudade numa simples folha?
     Provisoriamente desisto e traço ao acaso riscos no papel, deixando que meu olhar passeie vidrado na ponta da caneta, enquanto desejos, domesticados pelos teus seios, me tomam de assalto.
     Mais tarde na noite, meus pensamentos se aninham nas dobras mornas de teu corpo: o escuro torna tudo possível.
     Meus dias sem ti parecem atulhados de tempo.
                                          Pedro
PS: Tenho regado as plantas. Apressadamente, às vezes. Será que elas vão se ressentir?


3.   Chapada dos Guimarães, Mato Grosso, agosto de 2004
      Pedro,
     Chapada, centro geodésico do continente. Uns dizem que a população do planeta, no terceiro milênio, só aqui sobreviverá. Outros, vem em procissões místicas e se quedam meditando. Outros ainda, afiançam que o denso nevoeiro que por vezes aqui baixa, são caminhos do céu na terra. Os mais simples, no entanto, chegam e caem de joelhos, orando: afirmam, não se sabe se ainda desta vez feito homem, descerá neste lugar um novo Deus.
     Sinto um vazio no estômago. Não sei se o meu coração ri ou chora. Mergulho na cachoeira e desfaço-me em gotas de água prateada.
     Tua carta invadiu meu dia, desacertou meu coração, me acendeu relâmpagos no baixo ventre que a água fria não extinguiu. Vontade de largar tudo, correr para ti e me incendiar em teus braços.
     Mil beijos.
                                          Ana


4.   Rio, agosto de 2004
     Ana querida,
     A saudade de ti me apareceu na forma de um outono duvidoso: um nublado refúgio de lembranças de ti, um reflexo menos nítido de meu olhar no espelho ao acordar, uma impressão  vaga de que meus desejos se alimentam de negativas, uma sensação doída de que a vida nem sempre é um abraço...
     Errei horas pela casa até, feito autômato, me sentar frente a esta folha e começar a te escrever.
     Agora, cercado de palavras, aprisionado por frases que eu mesmo esculpi, tento identificar o que de ti floresce em mim. Porém, a cada palavra que escrevo aumenta a vontade de sumir por uma brecha do texto e encontrar teus lábios, teus olhos brilhantes e teus cabelos molhados pelas águas da Chapada.
     Giro a caneta pelo papel tentando me desenhar, mas não me encontro. Ansioso, olho o relógio: a garganta de minha ampulheta é mais larga que a da ampulheta do mundo. Preciso começar.
     Beijos apressados.                                                                 
Pedro

5.   Rio Madeira (Amazonas), a bordo do B/M Orlandina, setembro de 2004
     Pedro muito querido,
     Da floresta vem um cheiro doce que me excita, e o verde à minha volta, de tão verde, faz-me crer que tudo vai ser sempre assim. Na margem do rio, uma criança caminha indiferente a tudo o que me encanta. Nem o boto na sua fugaz aparição lhe altera o andar. Mais adiante, parada em Humaitá. Pela semi destruída escada de acesso, e pisando o lodo que o rio, agora em tempo de seca, deixou à mostra, embarcam três enormes sacos de biscoitos, catorze galinhas, dois motores, oito mestiços com quatro crianças sendo uma de colo, quatro latões de margarina, dois sacos de farinha, um homem com a camisa limpa, calçado e com uma maleta preta na mão direita, um cachorro que me pareceu cego e um vendedor de pamonha (que voltou a sair).
     E a viagem continua...
     Sinto que cada caminho que percorro redimensiona todo o meu ser. E me pergunto: que outras possibilidades, que outras vidas, outros mundos haveria, e quem seria eu, se em vez de seguir o capricho, a intuição que me fez voltar para um lado, eu tivesse me voltado para outro?
     Sei, não tens, não temos respostas. Mas, divisar tais possibilidades, me faz sentir multiplicada.
     Desejos de ancorar meu corpo ao teu, e me deixar adormecer.
     Beijos.
                                          Ana


6.   Rio, setembro de 2004
     Ana,
     Quisera eu me multiplicar, percorrer todos os caminhos possíveis, errar e acertar tantas vezes quantas as necessárias, descobrir todas as minhas forças. No entanto, e sempre com uma ânsia impotente de inverter os sentidos, me pego muitas vezes fugindo de determinadas sendas em favor de outras, excessivamente sensatas. Atalhos que encurtam a vida, eu sei.
     Te vejo nas ruas, esquinas, acenos fugazes, não sei mais se tu mesma ou uma outra que inventei.
     Recorto o horizonte com o olhar. Há dias em que, dentro de mim, te transformas em ausência.
     Anseio pela tua volta.
     Um beijo.                                 
     Pedro
PS: Sinto que nossa separação reedita em mim dores de separações tão antigas...


7.   Qosqo, Peru, outubro de 2004
     Querido Pedro,
     Nem quinhentos anos de sol e vento, nem dois terremotos, nem a voracidade de Pizarro conseguiram apagar os traços da cultura Inca.
     Na magnífica catedral com motivos barrocos (lembranças de Castela sobre ruínas Incas), no quadro da última ceia, Cristo tem à sua disposição, sobre a mesa, as mais variadas frutas tropicais. Cá fora, crianças estendem as mãos enquanto as mães apregoam bugigangas.
     Pátios sevilhanos e varandas talhadas em madeira. As praças parecem ser insuficientes para tantos “libertadores”.
     Não sei se são as cores dos aguaios ou o ar rarefeito dos Andes, mas algo me faz sentir tonta.
     Daqui, seguirei para Vancouver. Cada pedaço de mundo que minha leitura alcança me impressiona diferente, e vai-se encaixando num gigantesco quebra-cabeça onde cada peça só está onde está e na forma em que se encontra, no momento em que a recorto. Sei que nunca vou colocar a última peça, pois o quebra-cabeça cresce à medida que eu cresço, e nos confundimos. No entanto, sinto que a cada dia aumentam as minhas possibilidades de, nele, eu me reconhecer.
     Saudades do teu cheiro e de me dissolver em teus abraços.
                                          Ana


8.   Rio, outubro de 2004   
     Ana,
     Minha vontade é de te abraçar, te agarrar, te aguardar (me agradando), te aguardar o máximo, um máximo às vezes tão mínimo.
     No entanto, tudo o que neste momento consigo, é tentar verter em palavras de papel este mistério que trago comigo e que nem bem sei o que é... que eu nem bem sei quem sou...
     Palavras que morrem à medida que são geradas. Silenciosas se interrogadas, elas não se explicam, não dizem mais nada do que elas mesmas. São só palavras de papel. Mortas! Imutáveis, apenas lhes resta que, aliadas ao tempo e ao espaço, o mutante leitor as ressuscite, diferentes, para que, diferente, o autor do primevo gesto (existirá esse gesto?), renasça.
     Creio ser esse o único consolo das palavras escritas.
     Me recomponho ao descobrir teus olhos doces entre as palavras e nas entrelinhas da tua carta.
     No pó da vidraça escrevo o teu nome e, através de ti, fico-me lendo o mundo, lá fora, tomar tuas formas.
Pedro
PS: As pétalas das rosas, caem. Alguém lhes avisa das estações?

3 comentários:

Rosângela disse...

De uma delicadeza que emociona.

Anônimo disse...

Lindo!

Anônimo disse...

Maravilhosa prosa poética! Parabéns!